O mito da democracia racial

Artigo

Caetano Veloso, tratando sobre o nascimento de sua amizade com Gilberto Gil, no livro Verdade Tropical, conta que sua mãe um dia lhe disse: “Caetano, venha ver o preto que você gosta”. E o cantor registra ainda: “Eu sentia a alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele, e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente”.

Esse trecho do livro me veio à lembrança após o episódio com o jornalista da Rede Globo, William Waack, que tem sido assunto dos últimos dias.

Evidentemente, o “preto” de Waack e o da Dona Canô possuem conotação bem diferente.

Expressões do tipo “sai pra lá que não sou tuas nega”, “negro dominó: negro com pinta de branco”, “esse tem o pé na África”, “coisa de negro” são tão naturais no linguajar do brasileiro que, para quem fala, não carregam conteúdo, portanto, estariam supostamente isentas de preconceitos.

Esse comportamento brasileiro foi identificado por Florestan Fernandes (sociólogo brasileiro do séc. XX, autodenominado mestiço) ao se opor a ideia de democracia racial, cunhada por Gilberto Freyre. Para Freyre, o Brasil possuía uma interrelação racial adequada, a ser admirada por outros países, especialmente por aqueles que viviam nos seus esquemas jurídicos de segregação racial e apartheid, como EUA e África do Sul.

Fernandes, por outro lado, denunciava a existência do racismo velado por meio de comportamentos sutis e cruéis da democracia racial. Apontava que, diante da verticalização das relações da sociedade brasileira, ao escravo liberto não fora dada a condição de trabalhador livre e cidadão, por não ter sido efetivamente integrado a essa sociedade.

Ainda atualmente, a discriminação se mostra de forma tanto aberta quanto velada. A primeira é objeto de conflitos diretos e pode ser facilmente medida, a exemplo dos resultados do Atlas da violência de 2017. Por causa dos números e da clareza dos fatos, é mais difícil negar a existência desses comportamentos.

São inúmeras as fontes formais, leis em sentido amplo, no âmbito internacional e nacional, que combatem essas práticas discriminatórias, especialmente relacionadas à questão racial. A internacionalização da proteção dos direitos humanos teve início após a Segunda Guerra Mundial, sendo um dos objetivos da ONU acabar com a ideia de raça e valorizar a ideia de ser humano.

Um dos primeiros instrumentos do direito internacional relacionado com o combate direto à discriminação racial, de forma específica, foi aprovado no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência especializada da ONU. A Convenção nº 111, relativa à Discriminação em matéria de Emprego e Ocupação, de 1958, representa um dos marcos no combate à discriminação racial, por tratar de um dos campos mais importantes da vida social e no qual, efetivamente, a discriminação se dá de forma corriqueira e com ampla repercussão na trajetória dos indivíduos.

No Brasil, há numerosos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que dispõem sobre o racismo e as mais variadas formas de discriminação, inclusive prevendo sanções penais.

É, no entanto, a forma velada que tem o alcance mais devastador na autoestima do ser humano. Gera o paradoxo do preconceito inconsciente. Por um lado, o uso de expressões e ditados são socialmente aceitos, porque não tinham intenção ofensiva, não passando de um mal-entendido. De outro lado, evitam-se expressões como racismo, pele preta, negro, numa atitude de esquiva, para evitar a problematização do preconceito em nome da manutenção de uma falsa paz.

Esse pensar e agir de um modo automático se tornou uma armadilha óbvia da cultura da indiferença, uma espécie de anestesia com a existência de outro ser humano, especialmente quando não há pontos de contato entre eles.

Tais atitudes acabam criando um estado de corrosão social, por encolhimento. E mais e mais discriminações e preconceitos são introduzidos na experiência humana, afinal é isso o que o exemplo arrasta.

O preconceito inconsciente está enraizado de tal modo na nossa sociedade que, no ambiente de trabalho, já se pode inclusive medir. Segundo o IBGE, em 2013, só em Porto Alegre, a diferença salarial entre negros e brancos chegava a R$ 669,78, já em São Paulo essa diferença era ainda maior e girava em torno de R$ 1.021,85.

Ainda que muitas empresas estejam atentas para a necessidade de implementação de boas práticas, os processos de contratação são subjetivos e por isso tendem a refletir dentro dos muros corporativos os mesmos padrões existentes fora do ambiente laboral.

Essas situações acontecem comumente em ambientes empresariais de relações de poder verticalizadas, de submissão ou subordinação, passando a se enraizar na cultura da empresa de tal modo a assumir um caráter de naturalidade, normalidade ou, quando descobertas, de mal-entendido, mais uma vez refletindo o caráter velado do preconceito.

Não raro as empresas fazem uso de contratações como plataforma, pretendendo demonstrar a existência de um ambiente de diversidade e de igualdade de condições por merecimento, sem subjetivismos. Muitas destas estabelecem condutas de não discriminação, bem como de respeito às diferenças, fazendo constar, inclusive, nos seus códigos de ética e regimento interno. Mas mascaram o preconceito e a discriminação nos processos de gestão, com critérios diferentes para salário, promoções, transferências, além da prática de assédio moral. Note-se que essa última tem sido identificada como uma das maiores causas de adoecimento no trabalho.

Todavia, não é só no ambiente laboral que a tônica da discriminação aparece quando surge a disputa de espaço, também acontece na educação, na saúde, na cultura, entre outros. A luta de classe é só mais um fator.

Quando atitudes como a do jornalista vem a público, também vem a reboque a crítica, mas julgar o outro é fácil, o que deveria acontecer é auto-crítica. Em que posição eu estaria? Quantas vezes já fui partícipe dessas ofensas, ainda que com risadas ou olhares discriminatórios?

Alguém que pretenda viver em ambiente democrático tem que se abrir para dialogar com o outro, e, nesse aspecto, não vale o espelho.

 

Mônica Fenalti Delgado Pasetto

Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUCRS

Procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Caxias do Sul (RS)

Tags: Novembro

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